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A carne vinha de onde mesmo?

- 18/03/2009

Cabroeira era um povoado ­pe­que­no, mas com muitos orgulhos: tinha o me­lhor time de futebol das dominguei­ras; tinha o melhor forró de São João; tinha a melhor procissão da Paixão; tinha a me­lhor romaria para Canindé. Era um po­voado feliz com seu passado, presente e futuro e, para completar, tinha o ­melhor churrasquinho de praça, feito de ­legítima carne de cabrito do mais legítimo ­sertão.

Outra coisa não havia na cidade, nem no hotel de Zefa, nem na feira, nem nos dois quiosques perto da igreja, a não ser nas cadeiras de Suetônio, espalhadas pela calçada suja na praça central. Era ali que todos faziam negócios de ca­bras e ovelhas, de romances e casó­rios. Afinal, quem poderia resistir ao cheiro de­licioso da carne de cabrito-na-brasa do mestre Sué?

Quando chegava alguém, o lugar de parada era ali. Os hóspedes de Zefa gas­tavam parte da noite, bebericando e comendo ali; até o vigário, quando aparecia, assinava o ponto, conversando coisas longe do altar, aproveitando para sa­ber tudo onde tudo era sabido.

Todos conheciam Sué desde menino e seu churrasquinho foi herdado do pai que talvez tenha herdado do avô. Alguns tentaram compreender o segredo: devia ser algum amaciante misterioso? Alguma erva desconhecida? Algum sal mis­turado? Algum vinho catingueiro misturado, talvez jurubeba braba? O certo é que ninguém descobriu e ninguém se im­portou.

 

 

 

Acontece que chegou o ano 2000, ano de grandes mudanças para o ­mundo que estava profetizado de se acabar, e não se acabara! Cabroeira até cresceu, ganhou um novo bar, bem na frente de Sue­tônio, no outro lado da praça, bem na cara! Era sinal de desavença na ­certa.

No fim de todo santo dia, Sué botava as cadeiras, mas o deslavado novato também colocava. Os pouco avisados acabavam frequentando o novato e ­saíam contando histórias fantasiosas sobre as malandragens de certos churrasquinhos. Sué entendia que era um desaforo para seu trabalho, mas preferia não comprar briga tão cedo e foi dando trela pro desal­mado.

De repente, corria notícia de que um vulto encapuzado percorria as noites, nas sombras, quem seria? Todos que­riam descobrir, mas nada. Pelas madrugadas, o vulto esgueirava-se pelos cantos da cidade. Foi aí que surgiu a ­notícia arrasadora:

- O famoso churrasquinho de Suetô­nio tinha mesmo sabença do maligno. Era carne desabençoada de cabritas que pastavam nas madrugadas de terça-feira, silenciosamente, dentro do ­cemitério. O tempero era a pimenta que vinha do ou­tro lado, da escuridão da sepultura dos alheios.

A notícia correu e houve pânico. As mu­lheres, enraivecidas, marcharam para a praça, onde já havia muita gente, querendo satisfações. Seu Sué escapulia aqui e ali, mas logo chegavam mais e mais perguntas e o negócio foi ficando feio.

Para piorar, botando lenha na fogueira, o concorrente tomou a dianteira e foi ta­xativo:

- Eu mesmo vi. De noite. Segui as ca­­bras na Lua Cheia. Elas foram, deva­garzinho, por conta própria, pra dentro do cemitério. Por isso, a carne é saboro­sa. Tem parte com os defuntos de todos os santos e anjos ali enterrados. É carne benzida pelo Além.

A turba avançou para a bacia cheia de carne temperada, cheirou, cheirou, de­dou, espetou, franzindo o nariz com de­saprovação. Tinha cheiro de defunto? Ou de alma? Ninguém sabia, nem prova­va, mas as revoluções surgiram das dúvi­das. Quando ninguém prova o contrário, então o errado é o certo, na sabedoria po­pular e muita gente já morreu por conta disso.

Seu Sué gaguejava:

- Minha gente, eu ronco com as ga­linhas a noite inteira. Nem sei se ­alguma cabra escapou ou se alguém deu escapatória a ela. Eu não vi, mas posso garantir que a carne é tão boa e sagrada como a de meu santo pai que também está lá no cemitério.

O certo é que todo mundo passou pro outro lado da praça, onde o novato sor­ridente, já via a fortuna chegando a galope. Todo mundo queria comentar o fato. O povoado estava em pé de guerra, pronto para mas­sacrar o homem que, há pouco, era um dos mais queridos.

Então, aconteceu o que ninguém podia imaginar. No domingo, logo após a missa, o vigário que só visitava o lugarejo aos domingos, compareceu ao bar de Sué, sentou na cadeira, diante do olhar pasmo de todos os moradores. Seria um sacrilégio? O padre saboreou o churrasquinho, lambeu os beiços, limpou os dedos, para espanto da ­multidão.

Levantou-se, solenemente fez um sinal-da-cruz, vestiu a estola branca, pas­sando por trás do pescoço, deixando-a cair lentamente pelo corpo, pegou o as­per­sório (vidrinho de água-benta) e falou:

- Minha gente, falei com o prefeito, ou­tro dia. Ele vai consertar o muro do ce­mitério.

E agora, vou benzer o bar de Seu Sué, contra as almas penadas.

Dito e feito, foi rezando e espalhando água sobre carnes, linguiças, sara­patel, buchada, panelas e bacias. Tudo ben­zido, de alto a baixo, terminou em tom bíblico:

- E agora, minha gente, quem não for pecador, que jogue a primeira pedra. Posso garantir que as cabras de Seu Sué agiram na melhor das boas­ intenções e, se entraram no cemitério, foi por sugestão de Deus que está lá no céu. Se alguém quiser, jogue as pedras pra lá.

E apontava pro céu, para espanto do povo que foi se encostando, ­enquanto o esperto vigário arrematava com ma­es­tria:

- E agora, o churrasquinho corre por conta do amigo de vocês, seu velho ami­go Sué. Comida e bebida de graça, até o meio-dia.

Foi uma festança regada a muita cachaça e a notícia correu como vento, chegando até a capital. Dizem as más lín­guas que o padre levou um puxão de orelhas, mas ele estava defendendo uma de suas ovelhas e devolveu a paz para todos. Por que não?






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