Cabruzanga Doméstica
Ninguém sabe como começou, mas a vida tranquila da fazenda do coronel Salustino havia ficado para trás e, em seu lugar, estava uma guerra. Eram quatro famílias de pessoas trabalhadoras e honestas, mas - de repente - tudo estava de pernas para o ar. Olhares de soslaio, más-intenções visíveis, fofocas, trejeitos, todas as ferramentas do diabo estavam à solta, antevendo dias cada vez piores.
Cada pastor queria ver a caveira do outro e, então, se algo saía errado logo era motivo para culpar alguém. Era um cenário de cabruzanga total e estava piorando. No começo, um estragava o farelo preparado para as ovelhas; outro furava a cerca para atrasar o plano de acasalamentos; o terceiro trocava até rótulos de medicamentos; outro colocava sal grosso na água; cada um tentando fazer o pior para o ex-companheiro. Logo, cada um tinha três inimigos declarados, todos tentando prejudicar os lotes de ovelhas que nada tinham a ver com a briga. Um desmantelo geral.
A vida havia se tornado um inferno, pois os homens não se entendiam e, de quatro simpáticos pastores, transformaram-se em quatro notáveis guerreiros ardilosos, trabalhando no escurinho, nos bastidores. Desfilavam sorrisos plenos de cinismo e, pelas costas, praticavam toda sorte de artimanhas inspiradas pelo Cão.
O coronel chegava e via ovelhas trocadas nos lotes e endoidecia: “Como essa ovelha veio parar aqui”? Estava evidente que alguém trocava as ovelhas, nas noites escuras, pretendendo piorar o serviço dos ex-companheiros.
O rebanho, no geral, havia se desmantelado. Havia animal trocado em todos os retiros. Os machos cobriam as fêmeas erradas. Os cuidados sanitários estavam sendo boicotados. As máquinas emperravam sem motivo. As forragens guardadas estragavam sem motivo. As crias não encontravam as mães. Reinava o caos. O prejuízo seria estrondoso, na hora de fazer as contas.
Para piorar, os homens explicavam que só existia um caminho para melhorar: trocar parte das ovelhas dos lotes, cada um puxando brasa para sua sardinha. O coronel percebeu que o caso era bem mais complicado do que pensara.
Depois de consultar o vigário, por várias vezes, o coronel sempre fazia um discurso para todos os trabalhadores reunidos, seguindo a fé. Todos juravam seguir a cartilha dos homens decentes, mas bastava virar as costas e todos estavam maquinando como prejudicar os demais. O discurso nunca era suficiente.
Até esse momento, o coronel pensava que a querela reinava apenas entre os homens e, então, achava que tratar ciúme de homem podia ser coisa fácil, mas tudo piorou quando descobriu que as quatro esposas estavam no meio da querelança.
O coronel viu que cada marido olhava a mulher com certa desconfiança, a conversa sorridente, amigável, já não mais existia e todos estavam precavidos. Eram oito descontentes na fazenda.
As mulheres, antes dóceis, tornaram-se raivosas, cada uma fustigando as outras. Sobravam fofocas de que Tonho, casado com Nelinha, ficaria melhor se estivesse unido a Marilda, esposa do José que, por sua vez, deveria ficar com Eleida, esposa do Marcão, a qual estaria melhor se casada com Dolico, cuja mulher, Dorotéia não escondia o olhar incendiado por Tonho. O certo é que todos circulavam na praça, em dia de missa, com a cabeça baixa, pensando nos cornos, pois desconfiavam que a esposa, quando ficava sozinha, devia estar em pleno exercício da traição. Assim, até a vida conjugal estava uma droga, na fazenda do coronel que continuava ouvindo conselhos do bondoso e bem-solteiro vigário.
Um dia, o coronel esperou terminar a missa e ficou assuntando os quatro casais que retornavam para casa. Percebeu que os olhares trançados indicavam tudo, menos respeito e amor. Foi nesse pé que o coronel lembrou-se do velho pai:
- Meu filho, tem hora que a gente tem que ser Salomão. Corta o problema ao meio, para salvar o que for possível!
Entendeu que era hora de acabar com a cabruzanga na propriedade. Levou os homens para o primeiro curral e foi perguntando:
- Quais são as ovelhas ruins nesse lote?
O pastor daquele curral foi mostrando, uma a uma, separando as melhores numa baia. O coronel pediu a confirmação dos ex-companheiros, os quais, para mostrar sabença, trocaram uma ou outra, mas concordaram no geral.
- Muito bem! Agora, vamos dividir tudo em quatro lotes. Quatro lotes das melhores e quatro lotes das piores.
Repetiu a operação nos outros três currais e, depois, determinou a escolha:
- Vamos dividir tudo de novo, para acabar a briga. Agora, vamos ao sorteio, pela Bíblia. Cada um vai abrir a Bíblia em qualquer página. O primeiro a escolher o lote de ovelhas será o que tiver a palavra “Deus” logo no começo da página. O último será aquele que tiver a palavra “Deus” lá no final da página.
Todos concordaram em ter a palavra divina como juiz supremo. Foi assim que o coronel acabou com a guerra entre os homens, quanto às ovelhas. Cada um tratou de reunir seus quatro lotes de melhores e quatro lotes de piores, levando o novo rebanho para seu território. Afinal, agora era um rebanho abençoado pela decisão divina.
Acabada a operação, já era quase hora do almoço, o coronel reuniu os homens e as mulheres diante da casa-grande, colocou uns litros de boa cachaça, para comemorar o já-feito e o que faltava fazer. Abriu o discurso:
- Ninguém podia continuar vivendo num inferno, onde todos cobiçavam as melhores ovelhas dos amigos. Agora está tudo resolvido. Para completar, é hora de confessar os pecados domésticos. Deus quer tudo em perfeita harmonia. Por isso, agora, cada mulher vai apontar os defeitos dos outros casais.
Foi assim que cada uma, já inspirada pelas doses da boa cana, aproveitou a chance para espinafrar os supostos inimigos de calça ou de saia, mas sempre reduzia a voz quando falava de um deles, deixando clara sua preferência. Nenhuma apontou o próprio marido como referência do bem. Muito pelo contrário, todas estavam insatisfeitas, mas tinham preferência por algum marido alheio. O coronel viu que estava fácil: bastava fazer um novo troca-troca. Salomão teria feito o mesmo!
Dito e feito, pediu as alianças de casamento, colocou numa mesa, colocou um véu branco na cabeça das mulheres e selou o casamento sertanejo, com uma boa lapada prévia.
- Você aceita esse homem como seu marido especial, da mesma maneira que ele aceitou o novo rebanho indicado por Deus?
Todas concordaram, felizes pelo bom final, e o vislumbre de uma lua-de-mel aprovada e tão cobiçada. Os dias felizes do novo casamento iriam apagar os longos meses de mágoa. Tudo voltaria ao normal, pelo menos por um bom tempo.
A notícia correu, todos queriam saber como a cabruzanga terminara em festança. Aplaudiram o coronel que não se negava a dizer:
- Fui inspirado quando conversava com o padre. De um lado, colocamos as boas chances e, no outro, as más chances, juntamos o bom com o bom para dar o ótimo. Só isso. O resto ficou por conta de Deus que inspira as boas ações dos homens e das mulheres.
Soube-se, depois, que outros proprietários adotaram o mesmo troca-troca salomônico para resolver problemas em suas fazendas, também com sucesso. Afinal, quando dois se entendem, não há brigas.
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