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O dia do Xô, tinhoso!

- 04/12/2008

No começo parecia brincadeira; quem duvidasse da virilidade do bode do coronel podia estar com os dias contados. Onde já se viu bode frouxo? Os sus­surros, no entanto, deixavam claro: “o fa­­moso campeão havia amolecido a tim­bi­ra; não dava conta do recado grande nem pequeno. As cabritas chegavam, encostavam, lambiam, e nada! O ­enorme bode, com crina avantajada, barba de fazer inveja, não queria nada com as ca­britas, apesar do troféu de campeão lá no escritório.

Para piorar, a doença estava solta no terreiro do coronel: o gato não pegava ratos; nada de miau; ficava só no mi! O cachorro não latia pra estranhos e nem ligava pras cadelas dos vizinhos - nada de au-au, ficava num om-om de dar pena. Até o galo não estridentejava, anuncian­do o alvorecer; espoucava um có mas não chegava ao coró e muito menos ao co-co-ro-có.

Foi nesse ambiente de muita tristeza para o machíssimo coronel, pai de um molhe de filhos, que Da. Ernestina, a professora que entendia dos segredos da caatinga, deu o diagnóstico:

- Xii, pode mandar pra uma benzedeira, ou não vai ter crias na fazenda.

Até que parecia fácil, pois havia ben­zedores e benzedeiras espalhados pelos casebres nas encostas dos lajedos, com ­ritual para qualquer artimanha da escuridão. Havia até os que acendiam uma vela pra Deus e outra pro Cão - por mais que o padre espina­fras­se os crentes, todo santo domingo.

Foi assim que o coronel deu a ordem: o menino Arlézio devia levar seu ga­lo para uma benzedeira; a menina Clo­dete levaria seu gato peludo; o garoto Jacomé levaria o cachorro e o velho Severino levaria o bode.

Uma benzedeira? Sim, mas qual?  Depois de vários dias e de muitas visitas aos benzedores de plantão, souberam de uma velha esquisitona que, vez ou outra, aparecia nas feiras, olhava tu­do, observava tudo, e ia embora. Muita gente dizia que bastava seu olhar para secar uma planta! O certo é que nenhum bicho encostava nela, depois de muitos testes feitos: era verdade, chegar perto da encarquilhada com um gato no colo era um martírio pois o bichano iria arranhar, gritar, dar um jeito de escapar. Seja como for, era a última chance de desen­canar a maldição sobre o bode campeão. A turma resolveu enfrentar a velha benzedeira, como última chance.

 

 

 

Chegando à benzedeira, no meio das pedras altas, parecia que a turma era esperada:

- Pode entrar no quintal, meu filho, que vou benzer as criações de Deus.

Os dois garotos foram entrando, puxando a fila, quando ouviram o grito:

- Que é isso?! Pare já aí. Galo, tá bom; cachorro, vá lá; mas gato? Gato, não! E bode, credo em cruz. Bode? Jamais!

Os garotos ficaram assustados, enquanto a mulher engronhava:

- Onde já se viu benzer gato e bode? Isso é brincadeira de gente ruim. Bode é da esquerda, não tem benzeção pra ele. Gato é um estrupício!

Os garotos estavam apavorados, mas a velha continuou:

- Isto é mesmo uma presepada! Alguém tinhoso rogou uma boa praga pra nada gostar de viver, nem cabra, porca, coelho, mulher casada, mulher velha ou nova, nem minhoca! Não vai haver cria na fazenda, enquanto durar a maledicência. Vou benzer os bichos-do-bem, mas os outros, só à meia-noite, depois que o coronel queimar pólvora na porta-da-entrada. Voltem e digam tudo pra ele.

Depressinha, benzeu o cachorro e o galo, com folhas secas e largas cus­pa­radas na cara dos bichos, e despachou a turma que tinha ordem do ­coronel para não voltar sem a tarefa cumprida. Logo cedo, o galo ensaiava um si bemol estridente, levando alegria à fazenda e o cachorro rangia os dentes pra todo mun­do que tentasse entrar na fazenda. A benzeção funcionava! Os garotos resolveram voltar à benzedeira levando o gato e o bode, à meia-noite, depois da pól­vo­ra queimada, seguindo o receituário.

Os garotos, estavam chegando ao ca­­sebre, quando a velha gritou lá de dentro:

- Pode parar aí fora.

Saiu, com uma toalha na cabeça, fazendo o sinal da cruz, chegou até o portão, e foi logo apostrofando:

- Vocês estão sujos; vão até o açude, mergulhem, tirem os pecados, ­rezem o que o padre ensinou, e voltem até este portão.

Todos toparam, mergulharam no açu­de, ficaram limpos de acordo com o figurino. Quando retornavam, perceberam que a escuridão apretejou, as estrelas sumiram, o breu tomou conta do céu. Nem grilo, nem perereca, nenhuma ave, nada, nada, nada, o mundo havia mor­rido. Silêncio total, coisa de sepulcro. Isso não parecia coisa boa, mas ninguém arredou pé.

A velha saiu da casa, sempre com a cabeça coberta, uma vela acesa na mão, foi até o portão, logo dizendo:

- Agora, tudo vai depender de vocês. Prestem atenção: se o bode piscar, podem desistir.

Passou a vela longe do bode. O bruto fechou os olhos, fazendo um muxoxo orgulhoso. Chegou a vela mais perto. Nada!, o bicho não arredou pé, nem se me­xeu. Era um desafio. Chegou a vela na cara do bode. Nada! Ameaçou queimar a barba do brutamontes: nada! O bode nem ligava pro fogo, queria ­mesmo briga com o benzedor, que resmungou:

- Está na cara; o bode está mesmo demoniado, está com o Cão, vai ser dureza.

O gato, por sua vez, nem pestane­jou: viu o fogo e escapou do abraço do ga­roto, sumindo na escuridão. A velha resmungou alguma coisa, balançou umas plantas que estavam no cinto, na direção por onde o bichano escapou e deu o veredito:

- Deixe escapar, já está benzido. É coisa pequena. O problema está mesmo neste bode aqui.

Foi passando as instruções:

- Se um dia vocês contarem o que vão ver; o mal pegará vocês. Nunca abram a boca sobre o que vai acontecer, pois se­não a en­crenca vai voltar dobrada em ci­ma de vo­cês.

E continuou com as instruções:

Vamos entrando, de costas, preguem os olhos no bode; não tirem os olhos dele pra não quebrar a corrente. Não olhem pra lado nenhum. Tudo tem que ser feito de costas pra casa, pra não deixar o mal lá dentro.

A escuridão era imensa; só havia a luz da vela; o bode resmungava, não queria entrar, mas Severino era o vaqueiro mais forte da fazenda. Nem bem entraram, a porta bateu sozinha, sem qualquer vento, nada! Agora, todo mundo estava preso dentro da casa! A velha rezava, com os olhos esbugalhados nos olhos do bode que ensaiava umas cabrio­lagens:

- Olho firme no olho do bode, esta­mos só começando.

Janela abriu, janela bateu, armário balançou na parede, gamela despencou, a rede caiu, mesa bambeou, jarro quebrou, vento soprava pra todo lado, faca espetou sozinha na parede, telha despencou, o mundo estava em desordem - mas a velha, trôpega, continuava andando, de costas para a porta do fundo:

- Temos que sair pela porta do fundo, de costas, de olho no olho do mufun­go. Prestem atenção, senão a má-sina vai se amuar em vocês. Vão ­espalhando sal no caminho.

Os dois tremiam, rezaram tudo que sabiam, mas a porta não chegava. Depois de muito custo, conseguiram sair, deixando um rastro de sal na casa. Enxugaram o suor, se ajeitaram para partir, mas a velha deu o recado:

- Nem pensar; o trabalho só começou. São três dias seguidos, vocês não podem ver ninguém, vão manter o bode no fundo da caatinga, sem ver nada, nem bicho, nem gente, até a próxima meia-noite, sem comida, nada, só água. Vamos reverter a mandinga; a malquerença vai grudar em quem sujou a criação de Deus. Depois disso, vocês nunca mais vão querer benzer gato ou bode.

O casebre ficou fechado por três dias; ninguém sabia o que havia acontecido, pois tudo era feito à meia-noite, ficando só o rastro de sal. Passado o ritual, o bode recuperou o ar alegre de sem­p­re; a velha benzedeira ficou mais velha e torta na espinha; enquanto o comentário na feira corria solto:

- Benzer gato e bode? Isso é negócio pra doido. Xô, tinhoso! Ninguém abre o bico, pois a mandinga dá marcha-a-ré e pega quem contar o que viu.






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