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O belo anjo de Deus

- 01/03/2007

 
Severino sempre gostou de uma ca­chaça. Todo dia, sua mulher, uma qua­se santa por suportar tamanho tri­bu­fu como seu marido, dizia que, um dia, ele ia beber tanto, tanto, que ia ba­ter a caçuleta sem nem tugir, nem pigar­rear, nem coisa e tal. Nem terminava de cantar essa ladainha que já era re­pe­teco de todo santo dia e lá estava Severino brindando tamanha gentileza da patroa com algum espírito oculto nos ares domésticos. Era mesmo um debo­cha­do.
- Bote um bridão na língua, mulher, por­que os santos vão na frente.
E ela logo respondia:
- Pois se for, me bote num capote de madeira, pois não sou umazinha pa­ra divertir bicho de terra.
E, então, o pior aconteceu. No sábado, logo após a missa, a santa mulher resolveu quebrar a economia doméstica e apelar para um chamativo es­peto de camarão, na feira da praça. Nem piscou e logo já havia gente ofere­cen­do um segundo e ela embarcou, to­da satisfeita. Que mal haveria, depois da missa, com Severino no bar ali perti­nho, ela petiscar aquela coisa que só via nos filmes de tevê? Por certo, nada. Ape­sar das más línguas que diziam: “ca­marão no sertão é danação; quem qui­ser vá à praia e coma até com colher”.
O diabo, no entanto, naquele dia es­tava com a porteira escancarada e não é que a pobre mulher enrodilhou as tripas, deu nó, empacou, encriquiou, e caiu de vez na enxerga que, de tão ar­rumada, prenunciava coisa ruim!
E o finalmente foi lúgubre: no ­bater do sino do terço noturno, a pobre mulher estava decretada mais uma vítima de camarão que estufara a barriga da in­feliz até mais não poder.
Severino, cumprindo o ritual de to­do cabra macho, em vez de beber uma, be­beu muitas, e lá foi ziguezagueando pe­la estrada, em sua cami­nhoneta mam­bembe, até o distrito, para buscar um caixão. Entre a terceira e quarta gar­rafa, entendeu que não era uma cai­xão, mas uma urna funerária, como bem frisava o esperto vendedor. Uma u-r-n-a: negócio xi­que!
- Caixão é negócio pra pobre. ­Feito de madeira podre. Gente de boa fibra en­contra Deus numa urna.
Feliz da vida por ter comprado em dez pagamentos a tal urna enver­niza­da, Severino tomou o rumo de ca­sa, le­vando o triste objeto na carroceria, de­pois de se despedir da última garrafa.
Na metade do trajeto, segurando os olhos para não fechar, viu um bode bo­nitão sobre o lajedo, sorridente. Pensou:
- Ele ali, tão feliz, e eu aqui, lascado que nem Adão expulso do paraíso.
Nem bem pensou, um carcará saiu do nada, deu uma rasante, o bode deu um pulo, bateu o espinhaço, rolou, caiu na estrada na frente do veículo e cata­pum­ba! - uma bela chacoalhada e tudo pa­rou: o bode parecia mortinho da silva.
Severino matutou:
- Isso é azar duplo.
Achegou-se, cheirou o ­mal-cheiroso, viu que respirava e, então, teve a idéia genial de tentar salvar ao menos um defunto nesse dia tenebroso. Colo­cou o brutamontes dentro do caixão, fe­­chou a tampa, e seguiu viagem.
Meia hora de poeira depois, garganta seca, parou no boteco do Zeca, pe­­diu logo duas garrafas, pagou para to­­do mundo, todo mundo queria pagar pa­­ra ele - pelo menos nessa ocasião fu­­nérea. Mais meia hora e campeava um porre geral.
Foi aí que um dos bêbados saiu e voltou com a no­­­­­­tícia:
- Ô xente, Severino comprou um cai­­­xão lindão pra mulher.
Todo mundo desandou para ver o no­­­tável objeto e Severino, cheio de orgulho, abriu o discurso:
- Caixão uma ova! Isso aí é uma ur­­na. Uma u-r-n-a, das boas, madeira de lei, e coisa e tal, pois a patroa bem me­­recia.
- Pôxa, se achou dinheiro para es­se xiquê de fora, como não será o xiquê de dentro? - perguntou o baixote de olho apagado.
E saíram todos os vinte - menos Se­­verino que estava abraçado à ­última gar­rafa da noite - para abrir o esquife, pa­ra ver o veludo, o cetim, os estofados, o travesseiro, o cheiro gostoso e tu­­do aquilo que os defuntos só ganham quan­­do não podem mais cheirar, nem apal­­par, nem arranhar, nem nada!
Foi aí que, no ajeita-ajeita dos quatro trincos, surgiu um zumbido baixinho, lá de dentro. Parecia nada. Depois, virou um baforado. De repente, a tampa voa para os altos e salta um bode mons­­truoso, bufando de raiva, depois de horas de sacolejo e, agora, vendo aque­le povaréu pronto para um linchamento. O bode ergueu-se nas patas, ber­­rou para os céus, e sacudia-se todo, bem espantado.
Foi um corre-corre, um deus-nos-acu­­da. Onde já se viu bode em caixão de defunto?
Um dos bêbados, chegou-se a Se­ve­­rino:
- Ô homem, você sabe quem veio bus­­car sua patroa?
Severino engoliu meia garrafa de uma talagada só, cheio de tristeza, e sol­­tou um fiozinho de voz:
- Pois é claro que sei. É um anjo de Deus.
 
Publicado no Be 99





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